Conflito de interesses e corrupção

Conflito de interesses e corrupção

Poucos temas em conformidade são tão importantes quanto o do conflito de interesses e sua intersecção com a corrupção propriamente dita. Certo é que toda corrupção envolve um conflito de interesses atual, que se concretizou pela conduta voluntária de preferir o interesse privado ou particular. Assim, a corrupção não é mais que a realização do conflito de interesses, com a prevalência do interesse ilegítimo em detrimento do interesse legítimo. Em um sentido amplo, considerando a corrupção como um fenômeno de quebra da confiança depositada por uma empresa ou pelo Estado em uma pessoa, colaborador ou servidor, já podemos falar em corrupção neste caso.

Entretanto, em relação às empresas privadas, mas que também vale para o setor público, o conflito de interesses surge muito antes da concretização da conduta em desfavor da empresa. Podemos identificar além do conflito de interesses atual, ou seja, aquele em que há uma situação fática que concretiza o conflito entre o interesse da empresa e o interesse particular do colaborador, o conflito de interesses potencial e o percebido, igualmente importantes e que merecem um tratamento adequado nos procedimentos internos e códigos de conduta.

Vamos imaginar uma situação hipotética. Uma grande empresa possui uma diretoria independente e devidamente empoderada para tomar decisões a respeito das relações com fornecedores. O diretor responsável, entretanto, descobre dentre os seus fornecedores cadastrados uma empresa pertencente a seu irmão. Essa situação, por si só, já se reveste de uma potencialidade de conflito. Ele ainda não aconteceu, não é atual, pois a empresa do irmão jamais participou de qualquer concorrência ou celebrou contrato, mas, evidentemente, poderia vir a concorrer ou celebrar. Estamos diante de um conflito de interesses potencial.

Em outra hipótese, podemos ter que o irmão do fornecedor não seja o responsável pelas aquisições, mas diretor, por exemplo, de marketing da empresa, sem qualquer responsabilidade pela decisão de aquisição ou sequer conhecimento das atividades do irmão. Entretanto, se seu irmão participar de uma licitação de valor expressivo e ganhar, qual será a impressão que terceiras pessoas, dentro e fora da empresa, terão sobre a lisura do procedimento concorrencial? Essa situação, por si só, já pode causar um arranhão na imagem da empresa, fazendo-a suspeita de favoritismo ou nepotismo, mesmo que injustamente. Aqui temos uma situação de conflito de interesses percebido.

Observe-se que nesta última hipótese, não há em realidade qualquer conflito de interesses, uma vez que o tomador de decisão interna não tem qualquer relação com o fornecedor. Entretanto, vigora aqui a ideia de “a mulher de César não basta ser honesta, mas tem que parecer honesta”. No caso do conflito de interesse percebido, a proteção não é patrimonial, mas da reputação da empresa. E quem trabalha em conformidade sabe que a base de qualquer bom programa de compliance é a proteção reputacional. Mas o que fazer para se evitar essas situações?

Não há uma solução única. Cada negócio possui uma realidade própria. Em um mundo ideal, poderíamos propor que nenhum fornecedor poderia ter qualquer relação de parentesco, afinidade, amizade pessoal ou outra espécie de relacionamento próximo com qualquer diretor da empresa. Nessa situação, muitos dos problemas seriam evitados ainda no cadastro de fornecedores. Entretanto, nem sempre é tão fácil, pois nem todos os mercados fornecedores são perfeitos a ponto de que a proibição de contratar não afete a qualidade, quantidade, preço ou o próprio acesso ao produto ou serviço pela empresa. Além disso, a solução da revelação do conflito e a substituição do responsável pela decisão por terceiro não envolvido não resolve inteiramente a percepção de terceiros de que a decisão ainda assim é de favorecimento.

Além disso, o conflito de interesses vai muito além dessa situação simplista colocada no exemplo do fornecedor acima. Muitas vezes, como na indústria financeira, o conflito de interesses se revela na relação com o consumidor final, beneficiando a empresa e o seu empregado. Assim, ao vender um produto inapropriado ou sem a completa informação para o cliente pode ser – aparentemente – um bom negócio tanto para a instituição financeira, com seu maior lucro nessa venda, quanto para o seu empregado, com sua comissão engordada. Entretanto, ao deixar de colocar os interesses do cliente em primeiro lugar, regra primeira da instituição financeira, o seu colaborador desbordou o mero conflito de interesses para uma conduta que quebra a relação de confiança entre a empresa e o seu cliente.

Por tudo, o que fica claro é que a construção de soluções normativas para questões de conflito passa diretamente pelo estudo dos riscos dessas situações virem a acontecer naquele negócio específico. De qualquer modo, é certo que uma forte cultura ética, com a prevalência dos interesses do consumidor final em relação à empresa, e desta em relação aos seus colaboradores, é essencial para que situações conflituosas se apresentem, e, caso aconteçam, que seja dada a solução mais transparente e ética possível.

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