Afundado até o pescoço

Afundado até o pescoço

Um jogador, após uma série de infortúnios, resolve continuar suas apostas por acreditar que a “maré vai mudar” e, após tanto azar, a sorte vai voltar finalmente; ou então, um CEO reitera seu compromisso com um projeto mesmo após diversos fatores terem indicado sua inviabilidade. Quantas vezes não percebemos esse tipo de situação muito tarde para podermos estancar os prejuízos. Isso vale para todos os aspectos de nossa vida, sejamos um jogador, um investidor ou um executivo. Por que nos afundamos até o pescoço no lamaçal de más escolhas quando, logo nos primeiros passos, nossos sapatos já ficaram sujos de lama?

Não, não se preocupe! Esse comportamento é, acima de tudo, perfeitamente humano. Trata-se de um viés comportamental bastante estudado em psicologia e economia chamado de “escalada irracional de compromisso”, e talvez se explique pelo fato de que somos muito menos racionais do que desejamos ser. Antes de tudo, somos guiados por nossas emoções, e uma das mais fortes está a de que desejamos sempre parecer aos outros como pessoas racionais e coerentes.

Esses comportamentos aparentemente racionais, entretanto, são o seu completo oposto, e o pior, seja por um processo de autojustificação (quando há uma procura pós fato negativo de justificativas para a escolha), seja pela falácia do jogador (quando não compreendemos a independência de eventos e acreditamos que, nesses casos, o passado influencia o futuro), temos a tendência em insistir nas decisões passadas, mesmo que evidentemente equivocadas.

Assim, um jogador pode apostar que após 100 rodadas de cara ou coroa em que o resultado foi exatamente o mesmo, vamos dizer “coroa”, que na centésima-primeira rodada o resultado será “cara”. Entretanto, estatisticamente, cada rodada é independente da outra, sendo que cada uma das faces da moeda tem exatamente 50% de chance de aparecer.

Certamente o nosso jogador hipotético, após mais um resultado “coroa”, irá se auto justificar usando sua incompreensão matemática como prova de que estava certo – mesmo que o resultado não tenha comprovado sua certeza. E pior, se tiver oportunidade da centésima-segunda jogada, irá apostar novamente pelo mesmo motivo que o resultado será “coroa”.

Mas o que interessa isso para os profissionais do compliance?

Antes de mais nada, um programa de compliance não nasce no plano do homem ideal e de exigências éticas próprias para santos. Um programa de compliance nasce da concretude da empresa e de seus funcionários, considerando cada um deles na sua individualidade. José Ortega y Gasset, filósofo espanhol, já alertava que “eu sou eu e minha circunstância”, ou seja, nenhum de nós é um ser absolutamente dissociado do seu meio e da sua história.

Assim, se não se pode conhecer o íntimo da alma humana, um bom programa de compliance vai considerar as diversas circunstâncias que propiciam decisões erradas por parte de todos as pessoas relacionadas com a empresa e especialmente o risco de que haja uma escalada irracional desses equívocos. Para isso é essencial compreender para se elaborar um programa de compliance todo o processo decisório interno, suas alçadas e responsabilidades.

Conhecer os diversos viéses cognitivos é essencial para uma atuação inteligente em qualquer área de relacionamento humano. Esse é um assunto muito interessante e pretendo voltar a falar deles aqui em meu blog.

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