Caráter e instituições

Caráter e instituições

Homens e instituições têm caráter. Nos homens o caráter se mostra mais pelas ações do que pelas palavras. Estas, enganosas ou melífluas, podem dizer mais pelo que ocultam do que por seu sentido literal. Já nas instituições o caráter é revelado pela cultura interna, aquela maneira de agir e pensar compartilhada por seus integrantes.

Infelizmente, o comportamento do atual procurador-geral da República, Augusto Aras, não se revela compatível com a cultura do Ministério Público estabelecida pela Constituição Federal de 1988. Seu agir subalterno, autoritário, não democrático e centralizador reflete sua origem anterior à nova Constituição, sua opção pela carreira de advogado em detrimento do novo regime jurídico; enfim, o seu desprezo pelo novo Ministério Público.

A última demonstração de seu completo alheamento moral dessa nova cultura foi a sua participação em live organizada por um grupo de advogados que se autointitulam “Prerrogativas´´, composto essencialmente de advogados criminalistas que atuam ou atuaram em processos do mensalão e da Lava-Jato. Ou seja, uniram-se o despeito pelo sucesso da investigação ao desejo de derrubar o apoio da sociedade ao que chamam de “lavajatismo´´.

Junte-se a isso o interesse do atual PGR em destruir a candidatura de Moro à Presidência da República, favorecendo assim a reeleição de quem o escolheu — e pode indicá-lo para o STF —, e o que temos é o velho patrimonialismo, ou seja, a apropriação privada dos interesses públicos tentando sobreviver.

O que Aras deseja matar não é o lavajatismo, mas a independência do Ministério Público. Fazendo um paralelo com uma batalha, o intendente Aras, pois no Ministério Público não há generais, atira contra sua própria tropa. Esse “fogo amigo” visa a desconstituir o combate à corrupção, submeter procuradores da República a um “silêncio obsequioso” e principalmente mostrar que a classe dos poderosos no Brasil é intocável.

Esses objetivos estão sendo perseguidos com atitudes que desrespeitam o devido processo legal e são uma ameaça à democracia. Mesmo que não se goste da Operação Lava-Jato, mesmo que se ressinta de ela ter atingido seus políticos e interesses favoritos, há que se atentar para a gravidade do processo de centralização de informações sigilosas nas mãos do procurador-geral da República.

E não se está falando apenas de que todas as informações sigilosas constantes dos bancos de dados das operações da Lava-Jato decorrerem de decisões judiciais de juízes de primeiro grau e, portanto, somente compartilháveis por autorização destes — a questão é de competência, coisa que o ministro Toffoli não compreende, mas principalmente que a compartimentação de investigações visa à garantia do direito do investigado ao sigilo e ao seu não uso para outra finalidade que não a do próprio processo.

Aras, não se pode esquecer, foi indicado por Bolsonaro a despeito da sua completa insignificância dentro da carreira do Ministério Público Federal. E esse mesmo presidente lhe acena com uma cadeira no Supremo ao mesmo tempo em que fala em controlar o acesso a informações sigilosas de investigações em andamento, conforme revelado pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Isso tudo é preocupante e grave.

O que se está a ver, e é preciso resistir a isso, é a criação de um monstro autoritário e incontrolável. E esse monstro não é a Lava-Jato, pois esta submete seus pedidos a quatro graus de controle jurisdicional, mas sim uma “toda-poderosa´´ PGR a arquivar e processar investigações de foro privilegiado e conhecer potenciais investigações de outras instâncias. O controle das investigações da Polícia Federal e a centralização das informações sigilosas nas mãos de uma pessoa subserviente ao poder podem solapar as fundações de nossa democracia e República, pois há chance de ser usado para destruir reputações e afastar candidaturas indesejáveis

Assim, as regras de competência dos juízes, a compartimentação de investigações policiais e a independência dos membros do Ministério Público não são regras casuais, mas sim imprescindíveis para o não abuso do poder. Infelizmente, Aras age para se tornar todo-poderoso, e boa parte das pessoas que poderiam se contrapor está aturdida, confusa e silenciosa. É preciso que a sociedade acorde e renove a crença na cultura pública democrática e republicana inaugurada com a Constituição de 1988, caráter esse que falta a Augusto Aras.

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