Nunca o mesmo rio

Nunca o mesmo rio

“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio”, pois ao entrar pela segunda vez, ensinava Heráclito, nem você, nem o rio serão o mesmo. Assim também nenhuma crise é igual a outra, mesmo dentro da mesma empresa (até mesmo porque depois de uma primeira crise nenhuma empresa será a mesma). Entretanto, levada a extremo essa ideia impede qualquer possibilidade de conhecimento, pois compreender algo é construir interpretações sobre categorizações do passado. Enfim, para compreender o presente é preciso entender o passado em seus aspectos essenciais, mas nunca o passado se repetirá da mesma maneira.

Isso interessa muito a um profissional de compliance. Vejamos o caso da prevenção à lavagem de dinheiro. As tipologias de lavagem, ou seja, exemplos passados de formas pelas quais são transformados ativos ilícitos em outros aparentemente lícitos, contam-se às centenas, se não aos milhares. Um bom profissional da área deve estar pronto para estudá-las. No meu caso, de tantos casos de lavagem que investiguei ou li a respeito, comecei a ver situações no dia a dia que eram vetores possíveis dessa espécie de crime. Não que estivessem acontecendo, mas que bem poderiam ser usados para tanto.

Lembro bem quando fui almoçar em um restaurante por quilo que funcionava em um órgão público. Por circunstâncias daquele estado da federação, o estabelecimento não precisava de qualquer controle de caixa sobre os recebimentos, ou seja, não havia máquina registradora alguma. Além disso, o restaurante não aceitava cartão ou cheque, pelo que todos os consumidores pagavam em dinheiro. Na hora do pagamento imediatamente pensei na conveniência dessas circunstâncias para um lavador de dinheiro.

Primeiro, tratava-se de um estabelecimento frequentado por centenas de pessoas a cada dia da semana; segundo, não havia nenhuma forma de se estabelecer nem o numero de frequentadores, nem a quantidade de comida consumidas; terceiro, era totalmente paga em dinheiro, sem qualquer controle de caixa. Isso tudo a tornava um local ótimo para se lavar dinheiro (e para outras fraudes, inclusive contra o próprio estabelecimento), pois bastava aumentar o numero de frequentadores e o peso média das refeições e, voilà, um faturamento fantasma de difícil rastreamento apareceria. E o retorno desse valor para quem estivesse pagando pelo esquema de lavagem também seria fácil, pois bastava se apresentar como um fornecedor fantasma desse restaurante para receber o retorno. Enfim, o que quero dizer é que de tanto estudar o passado começamos, nós profissionais da áre, a ver crimes por todos os lados.

Por óbvio não podemos ser paranoicos, mas a compreensão dos procedimentos internos da sua empresa, do mercado onde ela opera e das fraudes comuns para a espécie do negócio são essenciais para bons profissionais de compliance. A prevenção de lavagem de dinheiro é a mais antiga área de compliance e talvez a melhor compreendida. Mas o estudo sobre tipologias de fraudes, erros e decisões equivocadas e ruins é, em qualquer área de compliance, essencial. Com certeza a fraude nunca será a mesma em uma segunda vez, mas o profissional estará capacitado a percebê-la em seus elementos essenciais.

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