Revista digital Cartórios com Você, ed. Jan-Mar 2020

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O ser humano gosta de acreditar que o mundo é preto e branco e que podemos distinguir claramente o certo do errado. Entretanto, a realidade é muito mais cheia de nuances e cores que nosso maniqueísmo gostaria de admitir. Essas pseudo-certezas lembram-me o ministro da Suprema Corte americana Potter Stewart em 1964 no caso Jacobellis v. Ohio ao dizer que não definiria o que consideraria pornografia pesada (hard-core pornography), mas que saberia distingui-la quando a visse (I know it when I see it). Entretanto, mesmo entre pessoas com certezas sobre a vida e similitude de experiência, a divergência de opinião é normal e razoável. Imagine hoje se eles tivessem que discutir pornografia em tempos de internet.

Digo isso para falar da dificuldade para identificação de operações suspeitas de lavagem de dinheiro, cuja comunicação ao COAF é obrigação de determinados setores
econômicos. Não se trata, evidentemente, de uma dificuldade nova, pois a lei de lavagem de dinheiro já tem mais de 20 anos e setores como o bancário e financeiro desde há muito tempo vem cumprindo o dever de identificação e comunicação com relativa eficiência. Entretanto, com o Provimento nº 88/19 do CNJ finalmente os notários e registradores estão submetidos à mesma obrigação. Digo finalmente porque desde 2012 a lei de lavagem estabelece essa categoria como obrigada a esse compliance específico, mas somente agora regulamentado.

“Implantem o compliance antilavagem o mais rápido possível, promovendo treinamento de seus funcionários sobre as diversas tipologias de lavagem de dinheiro. Só do treinamento, discussão e experiência é que se poderá ter um filtro de operações suspeitas realmente eficaz e evitar sanções regulamentares.”

Primeiro, nenhuma operação relevante de lavagem de dinheiro é claramente suspeita, pois frequentemente são dissimuladas por profissionais desse crime em uma série de transações de aparência legal. Hoje em dia o mercado ilícito de lavagem de dinheiro é autônomo e profissional. Assim, ninguém pense que reconhecerá uma lavagem de ativos quando a vir. O que se apresenta sempre é apenas uma fração da operação de lavagem, como uma peça de um gigante quebra-cabeça criminoso. Mesmo eu, com experiência em operações da área (Banestado-CC5 e Lava Jato), ainda enfrento muitas dúvidas quando se está investigando crimes dessa espécie. Mas muito pode ser feito com uma peça aqui, outra acolá, e é justamente esse o objetivo da lei de lavagem: fornecer aos investigadores informações de inteligência – pequenas peças do puzzle criminoso – para que se possa monitorar e combater com eficiência os crimes antecedentes.

O que se pode então dizer aos notários e registradores – especialmente aos primeiros, cujo risco de estarem sendo utilizados inocentemente em esquemas de lavagem de dinheiro é imenso? A resposta é: implantem o compliance antilavagem o mais rápido possível, promovendo treinamento de seus funcionários sobre as diversas tipologias de lavagem de dinheiro. Só do treinamento, discussão e experiência é que se poderá ter um filtro de operações suspeitas realmente eficaz e evitar sanções regulamentares. E qual a orientação se deve passar nesses treinamentos? Vamos informar tudo, inundando o COAF com fatos irrelevantes? É claro que não.

Suspeitar de algo errado não é suficiente para uma comunicação, portanto. A suspeita é algo subjetivo e pode simplesmente estar baseada em preconceito ou má informação. Há pessoas que acreditam ser a terra plana, mas nem por toda dúvida pessoal é possível levar a sério essa crença. Assim, devemos atentar para a existência de indícios, nos termos da lei e do provimento, que sustentem uma suspeita. Ou seja, qual o fato da realidade que traz a sensação de que o ilícito está ocorrendo? Assim a lei faz no caso das comunicações automáticas, em que o fato da realidade que embasa a suspeição está previamente antevisto, mas há um enorme campo de análise fática deixada ao exame dos notários e registradores. O que fica de mais relevante, portanto, é a criação de expertise dos servidores, notários e registradores com a implantação adequada das rotinas de conformidade, treinamento

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